Há 92 anos, nascia a escritora Cassandra Rios. Notabilizada como a pioneira da literatura lésbica no Brasil, Cassandra foi um fenômeno do mercado editorial entre as décadas de 50 e 70. Ela se consagrou como uma das escritoras mais populares do país e foi a primeira brasileira a vender mais de um milhão de exemplares de livros.
Cassandra também foi a autora mais perseguida pela ditadura militar brasileira (1964-1985), tendo 36 de seus 59 livros censurados pelo regime.
Cassandra Rios era o pseudônimo adotado por Odette Pérez Ríos, nascida em 3 de outubro de 1932, no bairro de Perdizes, em São Paulo. Era filha de Damiana Pérez e Graciano Fernández Ríos, um casal de imigrantes espanhóis.
Odette se interessou pela literatura desde muito jovem. Aos 14 anos, ela venceu o concurso “O Conto do Dia”, promovido pelo jornal O Tempo. Nos anos seguintes, publicou uma série de poemas, contos e crônicas nos jornais paulistanos.
bAos 16 anos, já reconhecendo-se como lésbica, Odette escreveu seu primeiro livro — A Volúpia do Pecado, uma história de amor entre as adolescentes Lyeth e Irez. A jovem escritora procurou todas as editoras de São Paulo, mas nenhuma aceitou publicar o seu romance.
Ela lançou então o livro de forma independente, com dinheiro emprestado por sua mãe. Foi nessa ocasião que utilizou pela primeira vez o pseudônimo “Cassandra Rios” — evocando a profetiza da mitologia grega que previu a Guerra de Troia, mas foi ignorada por todos e rotulada como louca.
A Volúpia do Pecado foi o primeiro romance da literatura brasileira a trazer duas lésbicas como protagonistas. Mesmo ignorada pelas editoras, a obra foi um sucesso de vendas — a ponto de ter sido reeditada nove vezes em uma década. Seu conteúdo, entretanto, também gerou incômodo no público conservador, rendendo críticas ácidas à autora.
bCassandra não se intimidou. Em 1949, ela persistiria na temática, lançando o livro Eudemônia. O romance trazia como protagonista uma mulher internada em uma clínica psiquiátrica por ser lésbica — antecipando em décadas a crítica da patologização da homossexualidade.
Aos 18 anos, visando escapar dos questionamentos e da pressão de sua família, Cassandra se casou com Eugênio — um amigo gay, com o qual concordou em manter um relacionamento de fachada. O acordo possibilitou que ela saísse da casa dos pais e pudesse dar continuidade à sua carreira de escritora de romances homoeróticos femininos.
A predileção pela inovação e o desembaraço em abordar tabus seriam características marcantes da produção literária de Cassandra. A autora abordou diversos assuntos que raramente eram tratados — da homossexualidade masculina à transexualidade. Mas foram as obras abordando o amor lésbico que lhe renderam destaque no mercado editorial.
A maneira franca com que Cassandra falava sobre o desejo feminino — rompendo com a perspectiva masculina, predominante na literatura erótica — era uma novidade que fascinava o público.
Cassandra também se destacou por sua representação positiva do amor e do desejo lésbico. Suas personagens não se resumiam ao papel de figuras marginais ou caricaturais, limitadas pela narrativa do pecado e do crime. Ao contrário: eram protagonistas dotadas de complexidade psicológica e contextualizadas a partir de narrativas humanizadas — ora problematizando os conflitos internos e os estigmas impostos pela sociedade, ora enfatizando a autoafirmação da homossexualidade feminina.
O estilo literário de Cassandra contribuiu muito para a popularização dos seus livros. Suas obras denotam a influência da linguagem popular dos folhetins, sendo marcadas pela escrita acessível e moldadas para o consumo das massas.
Não obstante, a temática do lesbianismo, a linguagem explícita e a descrição detalhada dos atos sexuais escandalizaram boa parte do público — e fizeram com que Cassandra se tornasse um alvo frequente das autoridades.
Cassandra enfrentaria a primeira condenação ainda em 1952, durante o governo de Getúlio Vargas. Acusada de atentado contra a moral, a escritora foi sentenciada a um ano de prisão domiciliar. Em 1959, no governo de Juscelino Kubistchek, as autoridades proibiram a montagem a peça de teatro “A mulher proibida”, inspirada no livro Eudemônia.
Já em 1962, no governo de João Goulart, oito dos 10 livros publicados por Cassandra foram censurados, sob a justificativa de que “ofendiam os valores familiares”.
A despeito da censura governamental — e do fato de ser uma autora de um nicho visto com maus olhos pelos setores conservadores da sociedade — Cassandra conseguiu se firmar como uma das escritoras mais populares do Brasil.
Entre 1960 e 1970, ela desbancou todos os campeões de venda do período, incluindo Jorge Amado, Clarice Lispector e Érico Veríssimo. Seus livros eram onipresentes nas livrarias e bancas de revistas e chegavam a atingir tiragens superiores a 300 mil exemplares. Em 1970, Cassandra se tornou a primeira autora brasileira a vender mais de um milhão de livros.
O sucesso editorial permitiu que Cassandra se tornasse a primeira escritora brasileira a viver exclusivamente da venda de livros, sem jamais ter exercido outra profissão. Ela acumulou casas e automóveis, comprou um sítio em Embu das Artes e montou sua própria livraria. Três de seus livros foram adaptados para o cinema.
A “Safo de Perdizes”, como ficou conhecida, era um fenômeno sem precedentes. A popularidade de Cassandra havia chegado até na caserna — como evidenciado pelo fato do livro A Lua Escondida, publicado pela autora em 1952, ser um dos mais procurados na Biblioteca do Exército.
O fato de que a escritora mais lida do Brasil era uma autora de romances homoeróticos femininos incomodou enormemente a ditadura militar instaurada em 1964. O regime julgava que o movimento em prol da liberação sexual estava intimamente ligado aos movimentos de contracultura e ao pensamento de esquerda.
Cassandra não era vista apenas como uma pornógrafa que atentava contra a moral e os bons costumes, mas também como uma subversiva.
A autora passou a ser vigiada e perseguida pela ditadura militar. Suas obras foram rotuladas como “moralmente degradantes”, voltadas a “aliciar o leitor” à homossexualidade. Somente o livro Eudemônia rendeu a abertura de 16 processos judiciais contra Cassandra. A escritora foi detida e conduzida ao DOPS para interrogatórios inúmeras vezes.
A perseguição se agravou ainda mais após a promulgação do AI-5, em 1968. Além de suspender os direitos políticos e as garantias individuais, o decreto forneceu instrumentos para que o regime ampliasse a censura contra obras de arte. Cassandra logo se converteu na escritora mais censurada pela ditadura militar. O regime baniu 36 de seus 59 livros.
A editora CBS, que publicava as obras de Cassandra, foi fechada pelos militares. Além de proibir a comercialização dos livros, o regime ordenou que os exemplares já produzidos fossem retirados de circulação. Os agentes eram instruídos a confiscar os livros da autora nas livrarias, nas bibliotecas e acervos públicos. Em seguida, os livros eram incinerados.
A campanha foi tão massiva que, a despeito de ter sido uma das escritoras mais prolíficas do Brasil entre as décadas de 1950 e 1970, as obras de Cassandra raramente são vistas nos sebos e livrarias até hoje.
A perseguição acabou por levar Cassandra à falência. A escritora teve de fechar sua livraria e perdeu quase todos os seus bens. Ela passou a trabalhar como ghost writer e a colaborar com artigos e colunas de jornal. Para tentar burlar a censura, ela passou a publicar seus livros eróticos usando pseudônimos masculinos (em especial “Oliver Rivers”).
Aproveitando-se da situação, as editoras pararam de oferecer a participação nas vendas, remunerando a escritora apenas pela cessão dos direitos autorais.
Curiosamente, os livros publicados por Cassandra sob pseudônimos masculinos não eram censurados. A autora comentou sobre o perfilamento praticado pelo regime em uma entrevista: “a ditadura me persegue por eu ser lésbica, mulher e por vender muitos livros. Se o homem escreve, ele é sábio, experiente. Se a mulher escreve, é ninfomaníaca, tarada. A censura é machista e burra e não se conforma com uma mulher escrevendo explicitamente cenas de sexo entre mulheres, e com tiragens imensas de livros”.
Cassandra também sofreu com o preconceito dos intelectuais progressistas. Em 1977, por exemplo, o seu nome foi retirado do chamado “Manifesto dos Intelectuais” — um abaixo-assinado direcionado ao Ministério da Justiça, produzido por 1.046 escritores, artistas e acadêmicos, reivindicando o fim da censura contra autores brasileiros e estrangeiros.
A despeito de sua enorme presença no mercado editorial, Cassandra foi ignorada pela academia e pela crítica especializada, que consideravam que seu estilo popular, análogo ao dos “folhetins de banca de jornal”, não era digno de atenção. Jorge Amado foi um dos poucos que reconheceram o valor da arte de Cassandra, defendendo que a escritora era uma “mestra no ofício do romance”.
Ainda em 1977, Cassandra lançou sua primeira autobiografia, chamada Censura – Minha Luta, Meu Amor, onde defendeu seu legado. No ano seguinte, a autora publicou A Santa Vaca – uma resposta à vilanização que sofreu nas mãos do regime militar. “Tanto me acusaram de fazer pornografia que eu resolvi fazer esse livro [para chocar]”, explicou.
Em 1980, Cassandra lançou Eu Sou Uma Lésbica, discorrendo sobre os preconceitos e desafios ainda presentes na sociedade brasileira.
Após a redemocratização, Cassandra se filiou ao PDT de Leonel Brizola. Ela concorreu ao cargo de deputada estadual no pleito de 1986, mas não conseguiu se eleger. Nos anos 90, apresentou um programa na Rádio Bandeirantes e participou pontualmente em alguns programas de televisão.
A autora publicou uma segunda autobiografia no ano 2000, intitulada Mezzamaro, Flores e Cassis: o Pecado de Cassandra. No livro, ela critica o apagamento de sua obra pela crítica especializada: “é corretíssimo que prestigiem e deem troféus aos grandes clássicos, mas que não se honre apenas os escolhidos pelas igrejinhas. Que também respeitem o que é mais popular, em vez de diminuí-lo e massacrá-lo, só porque foi um best-seller que não permitiriam classificar como bestwriter”.
Cassandra Rios faleceu dois anos depois, em 8 de março de 2002, aos 69 anos, vitimada por um câncer. Seu status de perseguida política da ditadura foi postumamente reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade.
O legado de Cassandra tem sido objeto de iniciativas de valorização nos últimos anos, mas a maioria de seus livros ainda segue fora de catálogo, sem previsão de relançamento.